(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz
de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)
(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz
de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)
“Encontrar-se na posição daquele que devolve o ato ético ‘excessivo’ de agressão com gentileza pode ser uma experiência traumática, como Victor Hugo mostra claramente em Os miseráveis: a diferença entre Jean Valjean e Javert é precisamente a diferença entre os dois modos de reação do ser humano ao gesto traumático da graça (bondade inesperada), de ‘oferecer a outra face’. No começo do romance, o bondoso bispo Myriel acolhe e abriga Valjean; no meio da noite, Valjean rouba a prataria do bispo e foge. Ele é pego e levado de volta, mas o bispo diz que a prataria é um presente e, nesse momento, ainda lhe entrega dois castiçais de prata, repreendendo-o diante da polícia por sair com tanta pressa que se esqueceu daquelas peças tão valiosas. Então o bispo o ‘lembra’ da promessa – que Valjean não se recorda de ter feito – de usar a prata para se tornar um homem honesto. Devastado por esse ato excessivo de responder ao mal com bondade, Valjean começa o longo caminho da recuperação ética, seguido caninamente por Javert, um policial obcecado pela ideia de levar o fugitivo Valjean ao tribunal. Mais tarde, em meio à agitação revolucionária de 1832, Valjean salva Javert, que foi desmascarado pelos revolucionários como espião da polícia e condenado à morte: ele se apresenta como voluntário para executar Javert, leva-o para longe e atira para o ar, enquanto Javert foge. Quando eles voltam a se encontrar, Javert percebe que está dividido entre a crença na lei e a misericórdia que Valjean teve com ele. Sente que não pode entregá-lo às autoridades e permite que parta. Incapaz de lidar com essa cisão entre sua dedicação à lei e sua consciência, Javert se suicida, jogando-se no Sena. O ponto crucial aqui é que Valjean, o criminoso empedernido por tantos anos de cadeia, aceita a graça e se lança numa recuperação moral, enquanto Javert, a personificação da lei, não consegue suportar a bondade e é levado ao suicídio quando é exposto a ela: prova definitiva de que a lei, longe de apenas se opor ao crime, é o crime universalizado, um crime elevado ao nível de princípio incondicional.”
(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)
“Por trás da máscara de não resistência submissa, o gesto de ‘oferecer a outra face’ desafia o outro a me tratar como um igual, um igual que, como igual, tem o direito de se defender e de bater também. A ira está solta, com Jean Claude van Damme, conta um caso sombrio que aconteceu numa corrupta prisão da Rússia pós-soviética e contém um elemento cristológico surpreendentemente acurado. Van Damme é um norte-americano que trabalha em Moscou e foi condenado a uma longa pena de prisão por ter matado o assassino de sua esposa; ele precisa travar duelos violentos com os outros presos para satisfazer os guardas, que apostam alto nas lutas. Incapaz de matar o adversário derrotado, Van Damme se recusa a lutar e é punido de maneira cruel, acorrentado ao alto de um mastro, de onde pende durante dias, sem água ou comida, até aceitar lutar novamente. Um dos presos que observa de sua cela o sofrimento de Van Damme reclama com os companheiros: ‘Por que ele se recusa a lutar? Além de perder e morrer, ele ainda vai criar problema para todos nós!’. Um colega mais sábio responde: ‘Não! Você não vê que ele está lutando por todos nós?’. E é claro que ele está certo: a recusa de Van Damme é, em si, uma luta muito mais perigosa para mudar regras de toda uma vida na prisão, para que os prisioneiros não sejam mais forçados a realizar combates cruéis para a diversão obscena dos carcereiros. Esse é um caso paradigmático do versículo de Jesus em Mateus: ‘Se alguém te fere a face direita, oferece-lhe também a esquerda’. Às vezes, recusar-se a lutar é um gesto muito mais violento de recusar todo o campo que determina as condições da luta; às vezes, devolver o golpe é o sinal mais seguro de concordância.”
“Além disso, os chamados fundamentalistas, cristãos ou muçulmanos, são realmente fundamentalistas no sentido estrito da palavra? Eles creem mesmo? O que falta neles é uma característica fácil de distinguir em todos os fundamentalistas autênticos, dos budistas tibetanos aos amish norte-americanos: a ausência de ressentimento e inveja, a profunda indiferença ao modo de vida dos não crentes. Se os chamados fundamentalistas de hoje creem realmente ter encontrado o caminho da verdade, por que deveriam se sentir ameaçados pelos não crentes, por que deveriam invejá-los? Quando encontra um hedonista ocidental, o budista dificilmente o condena. Apenas observa com benevolência que a busca de felicidade do hedonista destrói a si mesma. Em contraste com os verdadeiros fundamentalistas, os pseudo-fundamentalistas se sentem profundamente incomodados, intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos não crentes. Percebe-se que, ao combater o outro pecador, combatem a própria tentação. É por isso que os chamados fundamentalistas cristãos ou muçulmanos são uma desgraça para o verdadeiro fundamentalismo.
“Em 2001, uma investigação da ONU sobre a exploração ilegal dos recursos naturais do Congo descobriu que o conflito se deve sobretudo ao acesso, controle e comércio de cinco recursos minerais principais: coltan [columbita-tantalita], diamante, cobre, cobalto e ouro. De acordo com essa investigação, a exploração dos recursos naturais do Congo por chefes guerreiros e exércitos estrangeiros é ‘sistêmica e sistemática’; os líderes ugandenses e ruandeses em particular (seguidos de perto por zimbabuanos e angolanos), transformaram a soldadesca em exército comercial: o exército de Ruanda ganhou no mínimo 250 milhões de dólares em 18 meses com a venda de coltan, usado em celulares e laptops. O relatório concluiu que a guerra civil e a desintegração do Congo ‘criaram uma situação em que todos os beligerantes ganham. O único perdedor nesse imenso empreendimento comercial é o povo congolês’. Não devemos esquecer o velho pano de fundo ‘reducionista econômico’, quando ouvimos a mídia falar de paixões étnicas primitivas que ainda irrompem na selva africana.
"Por trás da fachada de guerra étnica, discernimos, portanto, os contornos do capitalismo global. Depois da queda de Mobutu, o Congo não existe mais como Estado unido; sobretudo a banda oriental é uma multiplicidade de territórios dominados por chefes guerreiros que controlam a região com um exército que, via de regra, inclui crianças drogadas. Cada chefe tem vínculos comerciais com alguma empresa estrangeira que explora as riquezas da região, principalmente minerais. Esse sistema é bom para os dois lados: a empresa consegue os direitos de mineração, livres de impostos e outras complicações, os chefes guerreiros enriquecem. A ironia é que muitos desses minerais são usados em produtos de alta tecnologia, como celulares e laptops. Em resumo: esqueça os costumes selvagens da população local; basta que as empresas estrangeiras de alta tecnologia se retirem para que todo o edifício da guerra étnica, alimentada por antigas paixões, desmorone.”
(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)
“Essa fragilidade do liberalismo aparece claramente no que vem acontecendo na China. Em vez de perceber a China contemporânea como uma distorção despótica do capitalismo, devemos vê-la como a repetição do desenvolvimento do capitalismo na própria Europa. No início da modernidade, a maioria dos Estados europeus estava distante da democracia – os que eram democráticos (como a Holanda), eram-no apenas para a elite liberal, não para as classes populares. As condições do capitalismo foram criadas e mantidas por uma violenta ditadura estatal, muito parecida com a da China atual: o Estado legalizou a expropriação brutal das pessoas comuns, transformando-as em proletários e disciplinando-as em seus novos papéis. Portanto, não há nada exótico na China: o que vem acontecendo lá apenas repete nosso próprio passado...”
"Talvez a caracterização mais sucinta da época que começa com a Primeira Guerra Mundial seja a conhecida frase atribuída a Gramsci: 'O velho mundo está morrendo, e o novo mundo luta para nascer: agora é o tempo dos monstros'. O fascismo e o stalinismo não foram os monstros gêmeos do século XX, nascidos um do esforço desesperado do velho mundo para sobreviver e o outro de uma iniciativa bastarda de construir um mundo novo?
[...]
"Um dos sinais do ressurgimento dessa monstruosidade é que as classes dominantes parecem cada vez menos capazes de governar, mesmo que seja por interesse próprio. Tomemos, por exemplo, o destino dos cristãos no Oriente Médio. Nos dois últimos milênios, os cristãos do Oriente Médio sobreviveram a uma série de calamidades, desde o fim do Império Romano: derrota nas Cruzadas, descolonização dos países árabes, revolução de Komeini no Irã etc. – com notável exceção da Arábia Saudita, principal aliado dos Estados Unidos na região, onde não há cristãos autóctones. No Iraque, havia aproximadamente um milhão de cristãos durante o governo de Saddam, e eles levavam exatamente a mesma vida dos outros súditos iraquianos (um deles, Tariq Aziz, chegou a ocupar o cargo de ministro do Exterior e era confidente de Saddam). Mas então aconteceu uma coisa estranha com os cristãos iraquianos, uma verdadeira catástrofe: um exército cristão [EUA/OTAN] ocupou (ou libertou, se preferirmos) o Iraque.
"O exército cristão [EUA/OTAN] de ocupação dissolveu o exército secular iraquiano e deixou as ruas livres para as milícias fundamentalistas muçulmanas aterrorizarem umas às outras e aos cristãos. Não admira que cerca de metade dos cristãos tenha deixado o país, preferindo até a Síria, que apoiava os terroristas, ao Iraque libertado e sob controle militar cristão. Em 2010, a situação piorou. Tariq Aziz, que sobreviveu aos julgamentos anteriores, foi condenado à forca por um tribunal xiita, acusado de ‘perseguição de partidos muçulmanos’ (isto é, por combater o fundamentalismo muçulmano) no governo Saddam. Houve atentados a bomba contra os cristãos e suas igrejas e dezenas de mortos, de modo que, finalmente, no início de novembro de 2010, o arcebispo de Bagdá, Atanasios Davud, aconselhou seu rebanho a deixar o Iraque: ‘Os cristãos têm de deixar o amado país de nossos ancestrais e evitar a planejada limpeza étnica. Isso é melhor do que sermos mortos um a um’. E, para pôr os pontos nos is, por assim dizer, a mídia informou em novembro de 2010 que Al-Maliki havia sido confirmado como primeiro-ministro iraquiano, graças ao apoio do Irã. Assim, o resultado da intervenção dos Estados Unidos foi que o Irã, principal agente do eixo do mal, está prestes a dominar politicamente o Iraque.
"A política norte-americana aproxima-se definitivamente da loucura, e não só na política interna, em que o Tea Party propõe combater a dívida nacional reduzindo os impostos, isto é, aumentando a dívida (não podemos deixar de lembrar aqui a famosa tese de Stalin de que, na União Soviética, o Estado enfraquece com o fortalecimento de seus órgãos, sobretudo os órgãos de repressão policial). Na política externa, a disseminação dos valores judaico-cristãos ocidentais cria condições para a expulsão dos cristãos (que talvez possam ir para o Irã...). Definitivamente, isso não é um choque de civilizações, mas um diálogo e uma cooperação verdadeiros entre os Estados Unidos e os fundamentalistas muçulmanos."
(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012. n.p. [epub])
“A noção do vínculo social estabelecido por meio de gestos vazios nos permite definir de maneira precisa a figura do sociopata: o que está a...