segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Passividade violenta

“Por trás da máscara de não resistência submissa, o gesto de ‘oferecer a outra face’ desafia o outro a me tratar como um igual, um igual que, como igual, tem o direito de se defender e de bater também. A ira está solta, com Jean Claude van Damme, conta um caso sombrio que aconteceu numa corrupta prisão da Rússia pós-soviética e contém um elemento cristológico surpreendentemente acurado. Van Damme é um norte-americano que trabalha em Moscou e foi condenado a uma longa pena de prisão por ter matado o assassino de sua esposa; ele precisa travar duelos violentos com os outros presos para satisfazer os guardas, que apostam alto nas lutas. Incapaz de matar o adversário derrotado, Van Damme se recusa a lutar e é punido de maneira cruel, acorrentado ao alto de um mastro, de onde pende durante dias, sem água ou comida, até aceitar lutar novamente. Um dos presos que observa de sua cela o sofrimento de Van Damme reclama com os companheiros: ‘Por que ele se recusa a lutar? Além de perder e morrer, ele ainda vai criar problema para todos nós!’. Um colega mais sábio responde: ‘Não! Você não vê que ele está lutando por todos nós?’. E é claro que ele está certo: a recusa de Van Damme é, em si, uma luta muito mais perigosa para mudar regras de toda uma vida na prisão, para que os prisioneiros não sejam mais forçados a realizar combates cruéis para a diversão obscena dos carcereiros. Esse é um caso paradigmático do versículo de Jesus em Mateus: ‘Se alguém te fere a face direita, oferece-lhe também a esquerda’. Às vezes, recusar-se a lutar é um gesto muito mais violento de recusar todo o campo que determina as condições da luta; às vezes, devolver o golpe é o sinal mais seguro de concordância.” 

(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)

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