domingo, 4 de setembro de 2022

Sociopata utilitarista.

“A noção do vínculo social estabelecido por meio de gestos vazios nos permite definir de maneira precisa a figura do sociopata: o que está além da compreensão do sociopata é o fato de que 'muitos atos humanos são praticados... no interesse da própria interação'? Em outras palavras, o uso da linguagem pelo sociopata corresponde paradoxalmente à noção corrente e sensata de linguagem como um meio puramente instrumental de comunicação, como sinais que transmitem significados. Ele usa a linguagem, não é envolvido nela, e é insensível à dimensão performativa. Isto determina a atitude de um sociopata em relação à moralidade: embora ele seja capaz de discernir as regras morais que regulam a interação social, e até de agir moralmente na medida em que verifica que isso serve aos seus objetivos, falta-lhe o senso visceral do certo e do errado, a noção de que simplesmente não podemos fazer algumas coisas, independentemente das regras sociais externas. Em suma, um sociopata pratica verdadeiramente a noção de moralidade desenvolvida pelo utilitarismo, segundo a qual moralidade designa um comportamento que adotamos ao calcular inteligentemente nossos interesses (ao fim e ao cabo, todos nós nos beneficiamos se tentarmos contribuir para o prazer do maior número possível de pessoas): para ele, moralidade é uma teoria que aprendemos e seguimos, não algo com que nos identificamos substancialmente. Fazer o mal é um erro de cálculo, não um ato culpável.” 

( ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 22) 

Espaço Simbólico, Grande Outro.

“O espaço simbólico funciona como um padrão de comparação contra o qual posso me medir. É por isso que o grande Outro pode ser personificado ou reificado como um agente único: o 'Deus' que vela por mim do além, e sobre todos os indivíduos reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade, Comunismo, Nação) e pela qual estou pronto a dar minha vida. Enquanto falo, nunca sou meramente um 'pequeno outro' (indivíduo) interagindo com outros 'pequenos outros': o grande Outro deve sempre estar lá. Essa referência inerente ao Outro é o tópico de uma piada infame sobre um pobre camponês que, tendo sofrido um naufrágio, vê-se abandonado numa ilha com, digamos, a Cindy Crawford. Depois de fazer sexo com ele, ela lhe pergunta como foi; sua resposta é 'Foi ótimo', mas ele ainda tem um favorzinho a pedir para completar sua satisfação: poderia ela se vestir como seu melhor amigo, usar calças e pintar um bigode no rosto? Ele lhe garante não ser um pervertido enrustido, como ela verá assim que lhe fizer o favor. Quando ela o faz, ele se aproxima dela, dá-lhe um tapinha nas costas e lhe diz com o olhar malicioso da cumplicidade masculina: 'Sabe o que me aconteceu? Acabo de transar com a Cindy Crawford!' Esse Terceiro, que está sempre presente como a testemunha, nega a possibilidade de um prazer privado inocente e intacto. O sexo é sempre minimamente exibicionista e depende do olhar de outrem. 

“Apesar de todo o seu poder fundador, o grande Outro é frágil, insubstancial, propriamente virtual, no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele só existe na medida em que sujeitos agem como se ele existisse. Seu status é semelhante ao de uma causa ideológica como Comunismo ou Nação: ele é a substância dos indivíduos que se reconhecem nele, o fundamento de toda a sua existência, o ponto de referência que fornece o horizonte supremo de significado, algo pelo qual esses indivíduos estão prontos a dar suas vidas; no entanto, a única coisa que realmente existe são esses indivíduos e suas atividades, de modo que essa substância é real apenas na medida em que indivíduos acreditam nela e agem de acordo com isso...” 

(ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. pp. 17-18)

“Não estou nem mesmo dizendo que ‘política é o inconsciente’, mas apenas que ‘o inconsciente é política’”

 

“É por isso também que Lacan afirma: 'Não estou nem mesmo dizendo que ‘política é o inconsciente’, mas apenas que ‘o inconsciente é política’'. A diferença é crucial. No primeiro caso, o inconsciente é elevado ao 'grande Outro' que existe: ele é colocado como uma substância que realmente domina e regula a atividade política, como na afirmação de que 'a verdadeira força motriz de nossa atividade política não são a ideologia ou os interesses, mas as motivações libidinais inconscientes'. No segundo caso, o próprio grande Outro perde seu caráter substancial, não é mais 'o inconsciente', porque se transforma num frágil e inconsistente campo sobredeterminado por lutas políticas. Há alguns anos, durante um debate na Biblioteca Pública de Nova York, Bernard-Henri Lévy fez uma defesa patética da tolerância liberal ('Você não gosta de viver numa sociedade em que se pode rir da religião dominante sem medo de ser morto por causa disso? Em que as mulheres são livres para se vestir como quiserem e escolher o homem que elas amam?' e assim por diante), enquanto eu mesmo fazia uma defesa igualmente patética do comunismo ('Com a crise crescente de alimentos, a crise ecológica, as incertezas sobre como abordar questões como a propriedade intelectual e a biogenética, com a construção de novos muros entre países e dentro de cada país, não seria necessário encontrar novas formas de ação coletiva que fossem radicalmente diferentes do mercado, assim como da administração estatal?'); a ironia da situação é que, quando o caso é declarado nesses termos abstratos, não há como não concordar um com o outro. Lévy, um anticomunista liberal ferrenho, defensor do livre-mercado, observou ironicamente que, nesse sentido, até ele era a favor do comunismo... Essa sensação de entendimento mútuo foi a prova de que ambos estávamos mergulhados até o pescoço na ideologia: 'ideologia' é justamente essa redução à 'essência' simplificada que esquece de maneira muito conveniente o 'ruído de fundo' que dá a densidade de seu significado real. Essa supressão do 'ruído de fundo' é o próprio cerne do sonho utópico. 

“Muito frequentemente, o que esse 'ruído de fundo' transmite é a obscenidade da violência bárbara que sustenta a face pública da lei e da ordem. É por isso que a tese de Benjamin de que todo monumento à civilização é um monumento à barbárie tem um impacto preciso na própria noção de ser civilizado: 'ser civilizado significa saber que se é potencialmente um bárbaro'. Toda civilização que repudia seu potencial bárbaro já capitulou diante do barbarismo. É assim que devemos ler o relatório sobre o estranho confronto de 1938 em Viena, quando uns brutamontes da SS entraram no apartamento de Freud para vasculhá-lo: o velho e digno Freud face a face com um jovem brutamontes da SS é uma metáfora do melhor na cultura da velha Europa diante do pior do barbarismo recém-surgido. Mas devemos acrescentar que a SS via-se e legitimava-se como a defensora da cultura e dos valores espirituais da Europa contra o barbarismo da modernidade, que só via dinheiro e sexo, um barbarismo que, para os nazistas, era ilustrado pelo nome de 'Freud'... Isso significa que deveríamos forçar um pouco mais a afirmação de Benjamin: e se a própria cultura for apenas uma pausa, uma trégua, um descanso na busca da barbárie? Talvez esse seja um dos modos de ler a breve paráfrase que Paul Celan faz de Brecht: 

'Que tempos são estes,

em que uma conversa

é quase um crime,

por incluir o já explícito?'”

(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012.  p. 25)

“O inconsciente está estruturado como uma linguagem.”

 


“Lacan iniciou seu 'retorno a Freud' com a leitura linguística de todo o edifício psicanalítico, sintetizada no que é talvez sua fórmula isolada mais conhecida: ‘O inconsciente está estruturado como uma linguagem.’ A percepção predominante do inconsciente é a de que ele é o domínio das pulsões irracionais, algo oposto ao eu consciente e racional. Para Lacan, essa noção do inconsciente pertence à Lebensphilosophie (filosofia de vida) romântica e nada tem a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tamanho escândalo não por afirmar que o eu racional está subordinado ao domínio muito mais vasto dos instintos irracionais cegos, mas porque demonstrou como o próprio inconsciente obedece à sua própria gramática e lógica: o inconsciente fala e pensa. O inconsciente não é terreno exclusivo de pulsões violentas que devem ser domadas pelo eu, mas o lugar onde uma verdade traumática fala abertamente. Aí reside a versão de Lacan do moto de Freud Wo es war, soll ich werden (Onde isso estava, devo advir): não 'O eu deveria conquistar o isso', o lugar das pulsões inconscientes, mas 'Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade'. O que me espera 'ali' não é uma Verdade profunda com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportável com a qual devo aprender a viver.

“Como, então, as ideias de Lacan diferem das escolas psicanalíticas convencionais de pensamento e do próprio Freud? Com relação a outras escolas, a primeira coisa que chama a atenção é o teor filosófico da teoria de Lacan. Para ele, fundamentalmente, a psicanálise não é uma teoria e técnica de tratamento de distúrbios psíquicos, mas uma teoria e prática que põe os indivíduos diante da dimensão mais radical da existência humana. Ela não mostra a um indivíduo como ele pode se acomodar às exigências da realidade social; em vez disso, explica de que modo, antes de mais nada, algo como 'realidade' se constitui. Ela não capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Na visão de Lacan, formações patológicas como neuroses, psicoses e perversões têm a dignidade de atitudes filosóficas fundamentais em face da realidade. Quando sofro de neurose obsessiva, essa 'doença' colore toda a minha relação com a realidade e define a estrutura global de minha personalidade. A principal crítica de Lacan a outras abordagens psicanalíticas diz respeito à sua orientação clínica: para Lacan, o objetivo do tratamento psicanalítico não é o bem-estar, a vida social bem-sucedida ou a realização pessoal do paciente, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas e os impasses essenciais de seu desejo.”  

(ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. pp. 9-10) 

Sociopata utilitarista.

“A noção do vínculo social estabelecido por meio de gestos vazios nos permite definir de maneira precisa a figura do sociopata: o que está a...