terça-feira, 17 de novembro de 2020

Passividade violenta II

Encontrar-se na posição daquele que devolve o ato ético ‘excessivo’ de agressão com gentileza pode ser uma experiência traumática, como Victor Hugo mostra claramente em Os miseráveis: a diferença entre Jean Valjean e Javert é precisamente a diferença entre os dois modos de reação do ser humano ao gesto traumático da graça (bondade inesperada), de ‘oferecer a outra face’. No começo do romance, o bondoso bispo Myriel acolhe e abriga Valjean; no meio da noite, Valjean rouba a prataria do bispo e foge. Ele é pego e levado de volta, mas o bispo diz que a prataria é um presente e, nesse momento, ainda lhe entrega dois castiçais de prata, repreendendo-o diante da polícia por sair com tanta pressa que se esqueceu daquelas peças tão valiosas. Então o bispo o ‘lembra’ da promessa – que Valjean não se recorda de ter feito – de usar a prata para se tornar um homem honesto. Devastado por esse ato excessivo de responder ao mal com bondade, Valjean começa o longo caminho da recuperação ética, seguido caninamente por Javert, um policial obcecado pela ideia de levar o fugitivo Valjean ao tribunal. Mais tarde, em meio à agitação revolucionária de 1832, Valjean salva Javert, que foi desmascarado pelos revolucionários como espião da polícia e condenado à morte: ele se apresenta como voluntário para executar Javert, leva-o para longe e atira para o ar, enquanto Javert foge. Quando eles voltam a se encontrar, Javert percebe que está dividido entre a crença na lei e a misericórdia que Valjean teve com ele. Sente que não pode entregá-lo às autoridades e permite que parta. Incapaz de lidar com essa cisão entre sua dedicação à lei e sua consciência, Javert se suicida, jogando-se no Sena. O ponto crucial aqui é que Valjean, o criminoso empedernido por tantos anos de cadeia, aceita a graça e se lança numa recuperação moral, enquanto Javert, a personificação da lei, não consegue suportar a bondade e é levado ao suicídio quando é exposto a ela: prova definitiva de que a lei, longe de apenas se opor ao crime, é o crime universalizado, um crime elevado ao nível de princípio incondicional.” 

(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)

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