quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O capital como universal abstrato


“A primeira lição que devemos aprender com esse paradoxo é evitar a confusão entre convicções individuais e crenças inscritas na própria lógica do sistema do qual participamos. Quando o papa disse, na mensagem de Natal de 25 de dezembro de 2008, que, se a humanidade não aprendesse a dominar seu egoísmo, a história da humanidade acabaria em autodestruição, ele não só repetiu um lugar-comum moralista, como fez uma declaração falsa. Admitimos que os dois principais perigos hoje são o capitalismo desenfreado e o fundamentalismo religioso, mas, como mesmo uma análise superficial da subjetividade ‘fundamentalista’ deixa claro, os fundamentalistas não são egoístas, muito pelo contrário: eles se dedicam impiedosamente a um objetivo transcendental e estão dispostos a sacrificar tudo por ele, inclusive a própria vida. Quanto ao capitalismo, é possível demonstrar que não se pode reduzir sua circulação sempre em expansão à luta egoísta dos capitalistas por mais e mais lucros. Aqui, um paralelo entre a estrutura do capital e a noção de ‘memes’ de Dawkins pode ajudar. O ‘meme’ se espalha não por seus efeitos benéficos sobre seu portador (digamos que aquele que o adota tem mais sucesso na vida, portanto tem vantagem na luta pela sobrevivência) ou pelas características que o tornam subjetivamente atraente a seu portador (que tenderia naturalmente a privilegiar a ideia que prometesse felicidade, em vez da ideia que só promete sofrimento e renúncia). Como um vírus de computador, o meme prolifera simplesmente programando sua própria retransmissão. Recordamos aqui o exemplo clássico dos dois missionários que trabalham num país rico e politicamente estável; um diz: ‘O fim está próximo; arrependam-se, senão sofrerão imensamente’, enquanto a mensagem do outro é apenas para que todos gozem uma vida feliz. Embora a mensagem do segundo seja muito mais atraente e benéfica, a do primeiro vencerá. Por quê? Porque quem realmente acredita que o fim está próximo fará um enorme esforço para converter o máximo possível de pessoas, enquanto a segunda crença não exige tanta dedicação ao proselitismo. O que é inquietante nessa ideia é que nós, seres humanos dotados de pensamento, vontade e experiência do significado, ainda assim somos vítimas involuntárias do ‘contágio do pensamento’, que funciona às cegas e espalha-se como um vírus de computador. Não admira que, ao falar de memes, Dennett recorra às mesmas metáforas de Lacan a respeito da linguagem: em ambos os casos, lidamos com um parasita que penetra, toma conta e usa o indivíduo humano para seus propósitos. E, de fato, a ‘memética’ não (re)descobre a ideia de um nível simbólico específico que funciona do lado de fora do (e, consequentemente, não pode ser reduzido ao) par padrão formado por fatos biológicos objetivos (efeitos ‘reais’ benéficos) e experiência subjetiva (a atração do significado do meme)? Num caso limítrofe, a ideia pode se espalhar, ainda que, no longo prazo, só traga destruição a seus portadores e seja vivenciada como não atraente. 

“Mas onde está o paralelo com o capital? Da mesma maneira que os memes – percebidos erroneamente por nós, sujeitos, como meios para nossa comunicação – controlam o espetáculo (eles nos usam para se reproduzir e multiplicar), as forças produtivas que nos parecem meios para satisfazer nossos desejos e necessidades controlam tudo: o verdadeiro objetivo do processo, seu fim em si mesmo, é o desenvolvimento das forças produtivas, e a satisfação de nossos desejos e necessidades (que erroneamente nos parecem o objetivo) são, de fato, apenas um meio para o desenvolvimento das forças produtivas. Em consequência, não deveríamos dizer que o capitalismo é sustentado pela ganância egoísta de capitalistas de mais poder e riqueza; essa mesma ganância é subordinada à luta impessoal do próprio capital para se reproduzir e expandir. Portanto, ficamos quase tentados a dizer que realmente precisamos de mais, e não menos, egoísmo esclarecido. Tomemos a ameaça ecológica: nesse caso, não necessitamos de um amor pseudoanimista pela natureza para agir, apenas de um interesse egoísta de longo prazo. Em termos lacanianos, podemos distinguir entre ganância individual e luta do próprio capital para se reproduzir e expandir como a diferença entre desejo e impulso. Krugman fez uma observação perspicaz a respeito da crise financeira: ‘Se pudéssemos inventar uma máquina do tempo para voltar a 2004, de modo que todos pudessem se perguntar se seriam cautelosos ou seguiriam a manada, a maioria seguiria a manada, apesar de saber que haveria uma crise’. É assim que funciona o capitalismo, essa é a eficiência material da ideologia capitalista: mesmo sabendo como são as coisas, continuamos a agir com base em falsas crenças." 

(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz 

de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012 n.p. [epub].)

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