domingo, 4 de setembro de 2022

“Não estou nem mesmo dizendo que ‘política é o inconsciente’, mas apenas que ‘o inconsciente é política’”

 

“É por isso também que Lacan afirma: 'Não estou nem mesmo dizendo que ‘política é o inconsciente’, mas apenas que ‘o inconsciente é política’'. A diferença é crucial. No primeiro caso, o inconsciente é elevado ao 'grande Outro' que existe: ele é colocado como uma substância que realmente domina e regula a atividade política, como na afirmação de que 'a verdadeira força motriz de nossa atividade política não são a ideologia ou os interesses, mas as motivações libidinais inconscientes'. No segundo caso, o próprio grande Outro perde seu caráter substancial, não é mais 'o inconsciente', porque se transforma num frágil e inconsistente campo sobredeterminado por lutas políticas. Há alguns anos, durante um debate na Biblioteca Pública de Nova York, Bernard-Henri Lévy fez uma defesa patética da tolerância liberal ('Você não gosta de viver numa sociedade em que se pode rir da religião dominante sem medo de ser morto por causa disso? Em que as mulheres são livres para se vestir como quiserem e escolher o homem que elas amam?' e assim por diante), enquanto eu mesmo fazia uma defesa igualmente patética do comunismo ('Com a crise crescente de alimentos, a crise ecológica, as incertezas sobre como abordar questões como a propriedade intelectual e a biogenética, com a construção de novos muros entre países e dentro de cada país, não seria necessário encontrar novas formas de ação coletiva que fossem radicalmente diferentes do mercado, assim como da administração estatal?'); a ironia da situação é que, quando o caso é declarado nesses termos abstratos, não há como não concordar um com o outro. Lévy, um anticomunista liberal ferrenho, defensor do livre-mercado, observou ironicamente que, nesse sentido, até ele era a favor do comunismo... Essa sensação de entendimento mútuo foi a prova de que ambos estávamos mergulhados até o pescoço na ideologia: 'ideologia' é justamente essa redução à 'essência' simplificada que esquece de maneira muito conveniente o 'ruído de fundo' que dá a densidade de seu significado real. Essa supressão do 'ruído de fundo' é o próprio cerne do sonho utópico. 

“Muito frequentemente, o que esse 'ruído de fundo' transmite é a obscenidade da violência bárbara que sustenta a face pública da lei e da ordem. É por isso que a tese de Benjamin de que todo monumento à civilização é um monumento à barbárie tem um impacto preciso na própria noção de ser civilizado: 'ser civilizado significa saber que se é potencialmente um bárbaro'. Toda civilização que repudia seu potencial bárbaro já capitulou diante do barbarismo. É assim que devemos ler o relatório sobre o estranho confronto de 1938 em Viena, quando uns brutamontes da SS entraram no apartamento de Freud para vasculhá-lo: o velho e digno Freud face a face com um jovem brutamontes da SS é uma metáfora do melhor na cultura da velha Europa diante do pior do barbarismo recém-surgido. Mas devemos acrescentar que a SS via-se e legitimava-se como a defensora da cultura e dos valores espirituais da Europa contra o barbarismo da modernidade, que só via dinheiro e sexo, um barbarismo que, para os nazistas, era ilustrado pelo nome de 'Freud'... Isso significa que deveríamos forçar um pouco mais a afirmação de Benjamin: e se a própria cultura for apenas uma pausa, uma trégua, um descanso na busca da barbárie? Talvez esse seja um dos modos de ler a breve paráfrase que Paul Celan faz de Brecht: 

'Que tempos são estes,

em que uma conversa

é quase um crime,

por incluir o já explícito?'”

(ZIZEK, Slavoj. Vivendo No Fim Dos Tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012.  p. 25)

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